Ettore Finazzi-Agrò

FINAZZI-AGRÒ, Ettore. O alibi infinito: o projeto e a prática na poesia de Fernando Pessoa. Tradução de Amílcar M. R. Guerra. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1987.

Originalmente publicado na Itália, em 1983, o ensaio de Ettore Finazzi-Agrò, professor titular de Literaturas Portuguesa e Brasileira da Università degli Studi di Roma "La Sapienza", testemunha um momento decisivo na fortuna crítica de Fernando Pessoa, impulsionado pela aparição, no ano precedente, do Livro do desassossego. Por um lado, ao realçarem noções latentes na poesia do autor – tais como a de “vácuo-Pessoa”, com base no que Leyla Perrone-Moisés defendera estar no vazio, e não no excesso, a matriz das criações pessoanas –, os fragmentos do Livro ofereciam novos vieses para a compreensão da heteronímia. Por outro lado, ao revelarem a exuberância criadora de Pessoa também como prosador, contribuíam para a massiva dilatação da sua comunidade de leitores, favorecendo abordagens menos circunscritas ao âmbito português. Em alguma medida, o estudo aqui enfocado reflete ambas as tendências.

À semelhança do que mais tarde faria Haquira Osakabe, o ensaísta italiano tanto se empenha em apreender culturalmente os escritos de Pessoa quanto em articular, como parte de um só conjunto, os textos de natureza poética e os de índole teórica. Comprometido em tornar menos exótico o desdobramento heteronímico (distanciando-se, portanto, das presumidas motivações psicológicas do fenômeno, semeadas pelo próprio Pessoa acerca de seu “caso”), este livro analisa a heteronímia tendo em vista o colapso do sujeito coeso e indivisível, preponderante na cultura europeia até o fim do século 19. Desse modo, sem desconsiderar as singularidades da experiência pessoana, assegura-se a inserção dela em um quadro mais amplo, graças à evocação de nomes como Nietzsche, Dostoiévski e Mallarmé, dentre outras figuras de vulto que se lançaram à dissolvência da escrita norteada pela centralidade do eu.

Apesar disso, o percurso analítico de Finazzi-Agrò evidencia que a heteronímia, sob o risco de se anular, permanece atada a um agente único do discurso, correspondente a um eu que se reafirma com base na autonegação. Dito de outro modo (e valendo-me de uma analogia cara a Fernando Pessoa, embora em direção contrária à sugerida por ele), nenhuma personagem de um drama está apta a falar sem que lhe seja concedida a palavra pelo dramaturgo. Afinal, mesmo um “supremo despersonalizado como Shakespeare”, segundo célebre expressão cunhada pelo escritor português, não é completamente eclipsado por Hamlet, Lear ou Falstaff. O mesmo pode ser dito de Fernando António Nogueira Pessoa em relação a Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos e Fernando Pessoa ele-mesmo.

Ao longo dos densos e abrangentes três capítulos que enformam este livro, o estudioso não se furta ao exame exaustivo de uma obra programaticamente votada ao resguardo de sua própria incompreensibilidade. Eis o “álibi infinito” ao qual alude o título, em que a ausência do acento agudo acentua a etimologia latina do vocábulo, primitivamente não um substantivo, mas sim um advérbio que significava “em outro lugar”. Ciente de que as mais estimulantes possibilidades de interpretação dos escritos de Pessoa devem resguardar o que neles se conserva impenetrável, Ettore Finazzi-Agrò não busca o enquadramento da obra pessoana em rígidos esquemas teóricos (não obstante as reflexões ali propostas dialoguem frequentemente com ideias de Giorgio Agamben e Jean Starobinski, por exemplo). Ao proceder desse modo, demonstra que menos importante do que desatar os fios do novelo (ou encontrar a saída do labirinto) é se manter em movimento, acompanhando a comutação constitutiva dos textos pessoanos, que se alternam entre o “aqui” e o “ali”, a “identidade” e a “diferença”, o “projeto” e a “prática”, dissolvendo tais oposições.

(PENTEADO, F. R.)