SIMÕES, João Gaspar. Vida e obra de Fernando Pessoa: história duma geração. II Vols. Lisboa: Livraria Bertrand, 1950.
Embora atualmente menos frequentado pelos pesquisadores de Fernando Pessoa, e tendo sido massivamente condenado pelos críticos de seu tempo, o colossal estudo de João Gaspar Simões apresenta-se, quando encarado a muitas décadas de sua publicação, como uma obra repleta de intuições argutas, muitas delas desenvolvidas posteriormente por outros críticos, de grande fôlego narrativo, descritivo e ensaístico.
É raro nos depararmos com uma abordagem relevante na tradição crítica pessoana que não dialogue com Vida e obra. Empreitada de alto risco, este livro é, ao mesmo tempo, um marco e uma fonte de polêmicas. Não se trata apenas de contar, ou deduzir, uma biografia, mas de abordar a poesia, as cartas, a personalidade, o misticismo, as reflexões políticas e a gênese heteronímica, que foi uma obsessão para o crítico. Além disso, o livro traça em linhas gerais a história da primeira geração modernista em Portugal, constituída por aqueles que mais ou menos diretamente permaneceram em torno da revista Orpheu.
Num nível meramente biográfico, Vida e obra suscita reservas, devido ao seu caráter anedótico (diria "romanceado", o próprio Gaspar Simões). O psicologismo causalista leva o crítico a inferir dados biográficos com base no texto literário. Em contrapartida, a literatura é encarada como projeção direta da vida. Uma crítica explicativa acaba por reduzir o texto a motivações externas, entre as quais avultam a nostalgia da infância, o complexo de Édipo e o medo da loucura. Como resultante desse freudismo simplificado, temos uma imagem um tanto punitiva de Pessoa.
É ainda importante notar que Gaspar Simões faz recorrentemente juízos estéticos, boa parte deles perecível com o tempo, por estarem embasados no pressuposto evolutivo, o que relega aos poemas iniciais um papel secundário com relação aos poemas da maturidade de Pessoa. Por outro lado, o ineditismo do trabalho a que o crítico se propôs, especialmente por sua riqueza de fontes, o brilho de muitas passagens e as proporções a que chegou foram de inestimável contribuição à fortuna crítica pessoana. A despeito das conhecidas reservas feitas por Eduardo Lourenço a este livro, é dele a avaliação de que, com Vida e obra, o crítico presencista teria construído “a primeira e, em certo sentido, definitiva imagem de Fernando Pessoa”.
(Gagliardi, C.)