LOURENÇO, Eduardo. Fernando Pessoa revisitado: leitura estruturante do drama em gente. Porto: Inova, 1973.
Em seu livro mais ousado sobre o poeta que tanto amou e por quem tanto escreveu, Eduardo Lourenço propõe uma sofisticada interpretação da heteronímia. Sua gênese revela duas lutas profundas, a de Lourenço com o crítico forte que o precede e com quem trava incansável diálogo, João Gaspar Simões, e aquela outra, que enxerga como propulsora do drama heteronímico, que se travaria entre Pessoa e Walt Whitman. Em ambas está latente o mistério da filiação.
Para o crítico, o drama em Pessoa reside na consciência infeliz de sua impotência criadora, nos dois sentidos que o termo encerra. O diálogo com Gaspar Simões é patente, seja na atenção devotada à nostalgia da infância como centro da pulsão poética de Pessoa, seja na visão da heteronímia como encenação erótica, através da qual a ocultação, a idealização ou mesmo o horror ao sexo são sublimações de sua “sexualidade branca”, ou ainda na interpretação da ausência do pai de Pessoa, na vida e na obra, em paralelo com a rasura de Whitman.
Do sombreamento freudiano desse drama interior, Caeiro e Campos seriam herdeiros simetricamente opostos do mesmo Whitman, ou tentativas de vencê-lo em níveis diferentes. Lourenço interpreta a ocultação do poeta americano em Caeiro como a “comédia trágica da heteronímia”: enquanto Campos se aproxima de Whitman e satura-se da realidade por ele revelada, Caeiro é a sua negação, a busca do seu oposto como forma de fingir-se feliz. Já Reis, poeta da sabedoria triste, elegia de uma consciência eivada de angústia moderna, que teme o tempo e a morte, encerraria um Pessoa discreto, provisoriamente indiferente, buscando recuperar a lucidez no tom elevado da forma clássica, a salvação voluntária pela resignação diante do real.
Reler Fernando Pessoa revisitado talvez acarrete na datação do seu psicologismo de base, mas também na identificação de um dos mais altos exemplos que podemos obter do ensaísmo em língua portuguesa.
(Gagliardi, C.)