SENA, Jorge de. Fernando Pessoa & Cª Heterónima. Volumes 1 e 2. Lisboa: Edições 70, 1982.
É um privilégio ler o que um grande poeta tem a dizer sobre outro grande poeta. Neste caso, mais do que um depoimento, trata-se dos estudos analíticos de um poeta que foi, também, um dos principais críticos portugueses. Os vinte e três ensaios (na terceira edição) que Jorge de Sena escreveu sobre Fernando Pessoa estendem-se por quatro décadas (1940-1978), tendo sido reunidos postumamente por sua esposa e editora, Mécia de Sena. Eles testemunham um diálogo tenso e uma relação atávica com a obra de Pessoa, a ponto de, uma vez absorvida por ele, tanto o Sena poeta quanto o Sena crítico terem passado a responder-lhe diretamente.
É de se supor que o atraso na publicação desses textos em livro tenha prejudicado a divulgação de alguns dos estudos que, vistos em retrospectiva, podem ser considerados como seminais da crítica pessoana. Esses trabalhos revelam uma visão muito aguda e pioneira da proposta estética de Pessoa, sobre a qual, já em 1940, Sena afirmava, na “Carta a Fernando Pessoa”, que “V. quando escreveu em seu próprio nome, não foi menos heterônimo do que qualquer deles”. Apesar de essa ser uma ideia muito difundida posteriormente, raras vezes encontramos referida a sua origem.
A compreensão de que a poesia ortônima compõe a máscara atrás da qual se oculta o homem Fernando Pessoa será central para que Sena desenvolva a sua leitura da “ciência de não-ser” e do “heterônimo Fernando Pessoa”. Trata-se de uma visada crítica que procura se afastar do “freudismo” praticado pela crítica presencista, nomeadamente pela figura de João Gaspar Simões, buscando revelar o poeta como “um moderno”, ou seja, movido por princípios estéticos de ruptura com as convenções poéticas estabelecidas, sobretudo no que diz respeito às noções de “expressão” e “sinceridade”. Dentro dessa perspectiva, Sena coloca em primeiro plano a formação literária de Pessoa, obtida em Durban, revelando a importância da literatura e da língua inglesas para a sua criação. Tal inflexão teórica não impede, no entanto, que Sena recaia na mesma intenção explicativa de viés psicológico do “caso Pessoa”, que moveu sua primeira geração crítica: o conceito de “sublimação” relacionado à ideia de “evolução” pode ser considerado estrutural no método que adota.
Os estudos também permitem acompanhar a trajetória de Sena enquanto editor e tradutor de Pessoa, com o “Prefácio e notas a Páginas de Doutrina Estética”, primeiro volume de textos teóricos de Pessoa, reunido e publicado por Sena, em 1946; “Introdução ao Livro do Desassossego”, longo ensaio que introduziria a edição de Sena ao Livro, que não foi possível concluir; e “O heterónimo Fernando Pessoa e os Poemas Ingleses que publicou”, texto introdutório à tradução dos referidos poemas, realizada e publicada por Sena, em 1974.
(Araujo, D. W. & Gagliardi, C.)