Leyla Perrone-Moisés

PERRONE-MOISÉS, Leyla. Fernando Pessoaaquém do eu, além do outro. São Paulo: Martins Fontes, 1982.

A terceira edição deste estudo, publicada em 2001, foi revista e enriquecida com cerca de cem páginas sobre o Livro do desassossego, algumas delas entre as melhores já formuladas sobre a obra cuja primeira edição veio a lume já no mesmo ano da publicação do estudo original da autora. Trata-se de cinco capítulos com profunda coerência entre si, seja por refletirem a mesma concepção geral da poética de Pessoa, seja pelo manifesto apreço pelo sentido maior de sua poesia.

Entre os conceitos-chave dessa leitura está a noção de “gênio desqualificado”. A autora mostra que, se no início de sua trajetória um Pessoa megalômano se apresentava como destinado a uma missão civilizacional, adotando a acepção triunfante do gênio romântico, com o passar do tempo a renúncia e o ceticismo com relação a tudo e a si mesmo tomam conta de seus escritos, fruto do gradativo abandono do papel de guia da humanidade e da decorrente assunção das imagens do inadaptado e sem reconhecimento social, do palhaço e do eterno estrangeiro. O percurso que vai do heroísmo carlyleano ou hugoano ao solipsismo decadente de Baudelaire e Dostoiévski, oferece-nos um drama bem pessoano – o de sua constante autodesqualificação.

Na sequência, nos deparamos com a leitura de Pessoa como o poeta da extrema lucidez sobre as falácias do sujeito. Ficção da linguagem, Pessoa seria o poeta da renúncia da personalidade. A concepção central deste livro é, afinal, a de que a poética da inteligência vai paulatinamente desintegrando o ser, dispersando a personalidade, a tal ponto que sua consciência possa ser considerada como “máquina infernal de produção do vácuo”. Embora referida anteriormente por Jorge de Sena, a noção de um “sujeito vazio” (ao invés de um sujeito multiplicado ou dividido) está na base da visão da autora sobre a heteronímia, que, não sendo simples invenção artística, é, a seu ver, fruto de uma falta, ou melhor, do excesso de desejo de ser. Operando através de uma leitura lacaniana de Pessoa, Perrone-Moisés protege-se do ocultismo, da falácia psicobiográfica e das demais ilações deterministas, na medida em que abandona verdades supostamente latentes no indivíduo para atingir um inconsciente estruturado como linguagem, isto é, o sujeito Pessoa como um significante vazio e em permanente construção. 

Já em “Caeiro Zen”, o quarto e último capítulo da primeira edição do livro, a autora adota um surpreendente procedimento de leitura da poesia deste heterônimo, segundo um jogo de aproximações com e afastamentos do Zen-budismo. Daí resulta uma leitura do Poema VIII do “Guardador de Rebanhos”, segundo a qual o “menino Jesus”, distante do idealismo cristão, está em especial conformidade com a prática Zen, por não ensinar a ver nas coisas nada que não elas mesmas. No desenvolvimento dessa proposta de leitura, a autora pinça um grande número de haicais dos poemas, reveladores de sua proposição sensacionista, para em seguida assinalar que o que impede o poeta de escrever apenas haicais é o mesmo que o impede de ser efetivamente o “mestre”, isto é, a sua desconfiança da simples percepção do real das coisas. Caeiro não é capaz de perder-se no objeto, de ser, como ele próprio afirma, do tamanho do que vê, porque sua poesia está assentada num “paradoxo axial”: a todo momento pensa que não deve pensar, afirma que nunca afirma.

Fernando Pessoa – aquém do eu, além do outro marca um momento nodal na fortuna crítica pessoana, até então eivada de uma linguagem e de um método estabelecidos por Gaspar Simões e que, apesar das modalizações e revalorações excepcionais de Sena e Lourenço, não haviam sido completamente reformulados.

(Gagliardi, C.)