José Gil

GIL, José. Fernando Pessoa ou a Metafísica das Sensações. Tradução de Miguel Serras Pereira e Ana Luísa Faria. Lisboa: Relógio d’Água, 1987.

Escrito originalmente em francês, Fernando Pessoa ou la métaphysique des sensations é o primeiro dos quatro livros de um dos principais pensadores de nosso tempo a respeito de Fernando Pessoa, o filósofo moçambicano e professor da Universidade Nova de Lisboa, José Gil. Não há, sobre o pensamento pessoano, tomado em suas diversificadas facetas, às quais se deve incluir a literária, obra equiparável à de José Gil em extensão e profundidade.

Neste primeiro livro, a autorreflexão sobre o processo criador, seja ela realizada nos textos crítico-teóricos do escritor, seja nas inúmeras vezes em que está integrada em sua obra literária, é considerada na forma de um laboratório de linguagem que faz com que os temas e os procedimentos fundamentais da poesia girem em torno de um núcleo comum: o sensacionismo. A doutrina das sensações, por mais esparsa e fragmentada que seja, é aqui encarada como foco irradiador de um programa experimental coerente, voltado ao princípio que norteia a arte poética pessoana: “sentir tudo e de todas as maneiras”. Para sentir artisticamente, no entanto, que é mais do que sentir no plano real, Gil explica que o poeta deve torna-se um conversor de sensações em palavras e frases, que não se destinam a simplesmente dizê-las, mas a analisá-las e desdobrá-las. Para que o sensacionista possa transformar-se nessa máquina capaz de metamorfosear fenômenos reais em intelectuais, deve tanto sentir intelectualmente quanto de diferentes maneiras. Eis o que abala a suposta integridade do caráter individual, o desassossego, condição existencial de Soares que, desde o início deste livro, é privilegiado na leitura de Gil como exemplo máximo do outramento e como sentimento necessário para o devir-outro.

Assim, diluída a pretensão de Pessoa a um sujeito artístico uno, a heteronímia passa a ser uma condição para o sensacionismo e a solução dos problemas por ele gerados, e Soares uma atmosfera propícia, um espaço experimental para as sensações. Dentre estas, Gil explica que o ponto culminante do sensacionismo está em provocar no leitor uma “emoção metafísica”, isto é, a sensação do mistério da existência e os questionamentos derivados dela. Para provocá-la, é preciso atingir o plano expressivo, apenas possível quando o poeta passa do plano da sensação para o da consciência da sensação, e desta para uma consciência autorreflexiva, consciente de si mesma.

Note-se que esta já não é uma proposta que se destina ao comentário literário ou a simplesmente refletir a respeito de um tema, mas a pensar em conjunto com o sensacionismo, de forma descritiva, hermenêutica e suplementar. Seguindo esse método, José Gil construiu uma das mais penetrantes análises do complexo sentir-pensar pessoano.

(Gagliardi, C.)