Haquira Osakabe

OSAKABE, Haquira. Fernando Pessoa - resposta à decadência. Curitiba: Edições Criar, 2002.*
 
O traço peculiar da leitura que Haquira Osakabe propõe de Fernando Pessoa consiste em buscar compreendê-lo culturalmente, isto é, para além do domínio exclusivo da estética, da história, da moral ou da filosofia. Resultante da combinação dessas quatro divisas críticas, sua percepção cultural de uma das obras mais impactantes da literatura ocidental se articula através da densa interlocução entre um Fernando Pessoa eminentemente reflexivo, a quem identifica como neopagão, e o contexto finissecular, o chamado decadentismo. O resultado é uma leitura capaz de conformar uma imagem autoral íntegra do pensador-Pessoa e ao mesmo tempo destacada da forte tradição psicológica que marca sua fortuna crítica.
 
À luz dos escritos atribuídos a António Mora, um continuador filosófico de Alberto Caeiro, Haquira compreende o fenômeno heteronímico como uma resposta ao declínio da civilização européia, ao desalento angustiante que se refletiu em obras fundamentais como as de Schopenhauer, Nietzsche, Huysmans, Wilde e Mallarmé. A tese de que a obra de Pessoa teria sido formulada como “resposta à decadência” desenvolve de maneira nuançada e especial fôlego reflexivo intuições de um autor marcante para Haquira, cujas palavras assim o destacam: “Eduardo Lourenço deu-me as principais pistas do meu trabalho, mesmo que eu atrevidamente tenha alterado certos rumos para os quais encaminhavam suas ideias”. Nesse diapasão, a poesia de Caeiro, nomeadamente O Guardador de Rebanhos, que se apresenta como uma epifania redentora no conjunto dessa obra, seria, então, uma primeira refutação da inteligência objetiva à doutrina cristã, e o ocultismo uma segunda tentativa de reconstrução de uma sensibilidade aturdida.
 
Esse pano de fundo finissecular, marcado pelo enfastiamento do espírito e pela fadiga moral, confere uma dimensão demiúrgica à obra de Pessoa, por ser motivação para uma poética que buscava conceber uma nova humanidade. Haquira encarou de modo especialmente orgânico os conjuntos poético e teórico pessoanos, como componentes de um grande gesto interventor, de uma missão transformadora. Ciente, entretanto, do caráter fragmentário e, não raramente, contraditório desse imenso corpo de textos, lançou-se ao desafio de acompanhar seu trajeto. Aqui, esse percurso é sobejamente ilustrado com passagens por vezes pouco conhecidas do autor, que se estendem do ceticismo corrosivo à via salvífica. À distância das soluções facilitadoras e dos apagamentos redutores, o crítico confere uma abordagem pautada em rigor descritivo e apurado senso de análise para os impasses inerentes a esse corpus eivado de contradições.
 
Cristalizada durante décadas de docência e pesquisa, esta leitura crítica de Fernando Pessoa ocupa, paralelamente às gerações de professores e pesquisadores formados pelo professor Haquira Osakabe, lugar central em seu valioso legado.
 
(Gagliardi, C.)
 
*Este texto, agora acrescido de poucas linhas, foi originalmente escrito, a convite de Maria Lúcia Dal Farra, para a segunda edição do livro, publicada postumamente pela editora Iluminuras, em 2013. Mantive a referência à edição original, onze anos mais velha, e cuja primeira formulação, ainda distante do texto final, foi-me entregue pelo próprio autor. Guardo-a como lembrança de um convívio intelectual realmente formador.