GARCEZ, Maria Helena Nery. Alberto Caeiro: “Descobridor da natureza”? Porto: Centro de Estudos Pessoanos, 1985.
O livro Alberto Caeiro: “Descobridor da natureza”?, tese de livre-docência da professora Nery Garcez, procura os sinais de uma tradição poética no avesso da imagem que Caeiro dá de si mesmo, como um poeta que não lê ou lê muito pouco. A partir da pesquisa realizada no espólio de Pessoa, Nery Garcez investiga com atenção apurada a presença de um diálogo polêmico e programático de Caeiro com a tradição de uma poesia da natureza e, em particular, com um de seus modelos fundamentais: o Cântico do Sol, de S. Francisco de Assis.
Embora seja esse o núcleo do estudo, não se pode deixar de comentar a importância do inicial cotejo entre Caeiro e o poema De Rerum Natura, de Lucrécio, primeiro grande poeta ocidental da natureza. Caeiro e Lucrécio convergiriam em suas obras em vários pontos, dos quais se destacam: a antirreligiosidade, a clareza e a simplicidade da linguagem, uma apreensão do mundo através do materialismo dos sentidos, e o interesse voltado para a objetividade do Real.
O confronto com Lucrécio prepara o terreno para a leitura intertextual de Caeiro como diálogo paródico com o Cântico do Sol de S. Francisco de Assis. Essa leitura se sustenta, em todo seu percurso, numa análise cuidadosa das obras de Caeiro e de Francisco, concentrando-se em diversos níveis do texto: fônico, semântico, imagético, teológico. A partir daí a comparação é conduzida numa via de mão dupla: por um lado aproxima Caeiro a muitos dos elementos formais utilizados por S. Francisco de Assis, por outro, dá realce às oposições que determinam a identidade desses textos, num desenvolvimento por contraste que estrutura o núcleo do trabalho. Dessa operação resultam distinções fundamentais, das quais dão ideia alguns dos temas que orientam os capítulos: a Transcendência de Francisco versus a Imanência de Caeiro, a Prece religiosa de Francisco versus a Paródia de Caeiro, a crença Teleológica no primeiro versus a fatalidade do acaso no segundo, entre outros.
O valor do livro de Nery Garcez se encontra, acima de tudo, em seu foco precisamente definido e na clareza e minúcia com que põe à prova suas hipóteses. Entretanto, não se pode deixar de observar o potencial ganho que haveria para o estudo, em seu objetivo de situar a poesia do autor numa particular tradição, caso ele se valesse também de uma comparação com outros autores cujas poéticas se constituem a partir de uma vinculação radical à natureza e ao real, porém numa fatura moderna mais próxima da caeiriana, como é notoriamente o caso de Walt Whitman.
Vale ressaltar, de resto, a pertinência de uma possível inclusão em suas análises do poema “Leram-me hoje S. Francisco de Assis”, incluído entre os Poemas Inconjuntos de Caeiro, mas ausente nas edições da Ática até 1985 – e por isso talvez desconhecido da autora no período de redação de seu estudo. Neste poema, Caeiro rebate diretamente o lirismo franciscano, o que dá ainda mais um indício de que a leitura do Cântico do Sol está pressuposta nos poemas do heterônimo, mas acima de tudo declara a sua recusa à interpretação cristã da natureza que a canção de S. Francisco de Assis encerra.
E é desta relação, afinal, que decorre um ponto problemático nas análises do livro, na medida em que a autora parece em certos momentos querer aferir a partir do modelo de S. Francisco de Assis o grau de realização poética de Caeiro, tomando a poesia franciscana como ideal de simplicidade a que o heterônimo só relativamente alcançaria, deixando de notar duas coisas: primeiro, que para a poesia de Caeiro a simplicidade cristã nem mesmo é simples, porque dependente de transcendência e unidade em Deus; e, depois, que a simplicidade de Caeiro não escapa da inviabilidade mesma de uma escrita sem intervenção do raciocínio, porque, na verdade, é desse paradoxo dramático que a sua poesia se faz.
(Lourenço, M. R.)